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Sobre o relatório

O relatório "Evidências em Debate" surgiu da necessidade de entender como as evidências científicas foram mobilizadas na CPI da Pandemia de Covid-19.

Num contexto de emergência internacional de saúde, com centenas de milhares de mortes registradas, a Comissão Parlamentar de Inquérito instituída pelo Senado se configurou como um mecanismo de freios e contrapesos à má gestão da saúde pelo governo Jair Bolsonaro.  Por se tratar de um tema que envolvia a ciência, num contexto em que toda a pesquisa mundial estava voltada à Covid-19, essa era uma ocasião privilegiada para ver como as evidências são mobilizadas em debates políticos.

A pesquisa se baseia em métodos mistos, quantitativos e qualitativos, para compreender os padrões de citação de evidências durante a CPI da Pandemia. Usando uma base com toda a transcrição das 69 sessões – contendo mais de 3 milhões de palavras –, foram localizadas as menções a pesquisas acadêmicas. Elas foram categorizadas pelas características de quem as mobilizou e, no caso dos estudos mais citados, pelas características do próprio estudo.

Para enriquecer o contexto e tornar o trabalho mais acessível, o relatório inclui pesquisa jornalística e charges.

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Conheça os estudos citados na CPI

Mais recursos

Para se aprofundar mais no que houve na CPI

Os estudos mais citados durante a CPI da Pandemia eram, em sua maioria, estudos questionados ou questionáveis, utilizados especialmente por bolsonaristas.

(Nota: esta listagem foi corrigida.)

1. Estudo de Manaus

Marcus Lacerda foi o coordenador de uma pesquisa que procurou averiguar o efeito de diferentes doses de cloroquina, das mais baixas às mais altas, em pacientes hospitalizados com Covid. Pacientes expostos às mais altas doses morreram. A pesquisa foi criticada por bolsonaristas por ter usado uma dosagem mais alta do que a que o Ministério da Saúde, gestão Pazuello, prescrevia. O estudo foi originalmente publicado na JAMA Network Open, onde foi o mais citado de 2020 e foi premiado como a melhor investigação original daquele ano. Durante o assédio dos defensores da cloroquina, Lacerda sofreu ameaças e precisou andar com escolta armada.

2. Estudo Prevent Senior (circulou informalmente)

O estudo não foi publicado, mas o preprint circulou em plataformas alternativas e grupos. A operadora Prevent Senior testou uma combinação de hidroxicloroquina e azitromicina em seus pacientes. Durante a CPI da Pandemia, revelou-se que pacientes que morreram foram retirados do estudo. O coordenador do estudo disse à Folha de S.Paulo que era impossível tirar conclusões dele.

3. Pesquisa Harvard-Lancet (retratado)

Publicado em maio de 2020 no periódico The Lancet, o estudo usou dados de 96 mil pacientes e 671 hospitais em seis continentes, cedidos pela Surgisphere Corporation. O resultado indicou a ineficiência do uso de hidroxicloroquina e cloroquina, sozinha ou não, para o tratamento da Covid-19 e os associou ao risco de complicações cardíacas e morte. Duas semanas depois, a Lancet e três autores do artigo divulgaram uma retratação condenando a qualidade dos dados utilizados pela pesquisa. Sapan Desai, quarto autor da pesquisa e fundador da Surgisphere, não se pronunciou. Como medida corretiva, a Lancet promoveu mudanças no processo de avaliação de artigos com grande conjunto de dados, principalmente os que não podem ser auditados. 

4. Epicovid (autor presente)

Liderada pelo epidemiologista Pedro Hallal, a Epicovid estudou a evolução da Covid-19 no Brasil por meio de testes sorológicos em amostras de sangue de pacientes de diferentes regiões do país. A pesquisa permitiu estimar uma alta taxa de subnotificação de casos de doença no país e sua prevalência em grupos étnicos específicos. À CPI, Hallal disse ter sido censurado na coletiva de imprensa promovida pelo Palácio do Planalto. Segundo o pesquisador, um slide com dados a respeito das desigualdades de contaminação da Covid por grupos étnicos foi retirado da sua apresentação. 

5. Ensaio Clínico do Senai Cimatec

O estudo ao qual houve referência direta na CPI não está disponível. Referia-se à criação de vacinas RNA e era patrocinado pelo MCTI. O estudo publicado mais diretamente relacionado à referência é posterior. Foi desenvolvido por pesquisadores do Senai Cimatec em parceria com a empresa estadunidense  HDT Bio Corp, a farmacêutica indiana Gennova Biopharmaceuticals e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, o ensaio clínico teve sua primeira fase aprovada pela Anvisa em janeiro de 2022 e a segunda em outubro do mesmo ano. O pesquisador-chefe do Senai Cimatec, Roberto Badaró, afirmou ao jornal O Globo que a vacina vacina RNA MCTI CIMATEC HDT, desenvolvida em Salvador, estará disponível em 2024.

6. Grupo Alerta (autora presente)

A pesquisa Mortes evitáveis por Covid-19 no Brasil foi elaborada pelos pesquisadores Guilherme Werneck (UERJ), Ligia Bahia (UFRJ), Jéssica Pronestino de Lima Moreira (UFRJ) e Mário Scheffer (USP) com o apoio da Oxfam Brasil e do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor a partir de iniciativa do grupo Alerta. Além disso, contou com a participação da Anistia Internacional Brasil, Inesc, SBPC, Instituto Ethos e Centro Santos Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo. Dentre os principais resultados, o estudo estimou que cerca de 120 mil mortes ocorridas entre março de 2020 e março de 2021 poderiam ter sido evitadas caso o Brasil tivesse adotado o distanciamento social e restrições a aglomerações.

7. Estudo sobre proxalutamida (preprint)

Com o apoio e patrocínio do Grupo Samel, uma rede de hospitais e planos de saúde, o estudo sobre proxalutamida teve como responsável o endocrinologista Flávio Cadegiani. Os dados e resultados da pesquisa foram apresentados em um hospital da Samel, em Manaus, e publicado no site Clinical Trials, mas existem divergências significativas nos números de mortes entre as duas versões. Embora tenha sido aprovado pela Conep, o estudo passou a ser investigado pelo órgão após descumprir regras de execução. Segundo a Conep, 200 pacientes da pesquisa morreram, mas o número não é preciso e pode ser maior. O estudo não foi publicado em revista científica e não passou pelo crivo dos pares. No relatório final da CPI, Cadegiani foi acusado de crime contra a humanidade.

8. Estudo Tess Lawrie (preprint)

Theresa Ann Lawrie, também conhecida como Tess Lawrie,  é uma médica britânica e diretora da Evidence-Based Medicine Consultancy. Durante a CPI, senadores bolsonaristas citaram seu nome para validar o uso de ivermectina no tratamento da Covid19, apoiados em um preprint da médica. O estudo em questão, produzido pelo grupo Aliança para Cuidados Intensivos na Linha de Frente da Covid-19, trata-se de uma revisão de 27 estudos, dos quais apenas 15 foram considerados. A pesquisa de Lawrie e sua equipe sofreu duras críticas a respeito da diversidade de metodologias, por se tratar de uma análise de estudos sobre a doença em diferentes países, com  baixo número de pacientes participantes e diferentes faixas etárias. Além disso, trata-se de um preprint, ou seja, um estudo não publicado em revista científica nem revisado por pares.  

9. Trabalho de Didier Raoult (retratado)

Didier Raoult é um polêmico médico e microbiologista francês. Ele fundou e dirige o Instituto Hospitalar Universitário Méditerranée Infection (IHU), no qual realiza suas pesquisas. A mais famosa foi publicada em artigo em março de 2020, na revista Travel Medicine and Infectious Disease. Indicava a eficiência da combinação de hidroxicloroquina e azitromicina no tratamento de pacientes com Covid-19. Após críticas da comunidade científica e em resposta a um artigo publicado no International Journal of Antimicrobial Agents, Raoult e sua equipe publicaram, no mesmo periódico, um “Mea culpa” e assumiram que a exclusão de seis pacientes do estudo afetou nos seus resultados. Ainda assim, políticos como Bolsonaro e Trump - e também seus pupilos - divulgaram e apoiaram os resultados fraudulentos do estudo francês. 

10. Pesquisa duplo-cego randomizada - cloroquina (não identificada)

Em diferentes momentos da CPI, estudos foram citados de forma genérica. Com a coloquialidade comum a esse tipo de debate, é comum a referência a publicações dessa maneira: “existe um estudo sobre..” e “vários estudos a respeito…”. Mas a CPI é um espaço de provas concretas que precisam ser apresentadas e avaliadas. A pesquisa duplo-cego randomizada com a cloroquina, embora tenha sido uma das mais citadas, foi mobilizada por participantes da CPI que deram muito poucas informações sobre sua referência. Quem é o autor? Onde foi publicada? Nada disso foi referenciado, o que inviabiliza identificar de qual pesquisa se fala. 

Vídeos

O relatório "Evidências em Debate" cita algumas cenas que são importantes para compreender o contexto do uso das evidências científicas. Conheça abaixo os vídeos citados.

Disfarçando as evidências

Ao final da CPI da Pandemia, o senador Luís Carlos Heinze apresentou um voto em separado listando dezenas de referências de estudos que, segundo seus conselheiros, seriam favoráveis às políticas do governo.

Pedro Hallal, autor do estudo Epicovid, disse à CPI que o Ministério da Saúde, na gestão Pazuello, tentou censurar a divulgação do estudo que estimava a subnotificação dos casos de Covid-19. (Assim como este relatório, o Epicovid-19 foi apoiado pelo Instituto Serrapilheira. Antes da censura oficial, chegou a receber apoio do Ministério da Saúde.)

Na mesma sessão, Jurema Werneck apresentou dados do estudo Alerta, feito por uma coalizão da sociedade civil, estimando quantas mortes poderiam ser evitadas com uma melhor condução da pandemia.

Atuando nas sombras

Este vídeo, originalmente publicado pelo Poder360, mostra uma reunião de médicos com Bolsonaro em setembro de 2020. Nela, o virologista Paolo Zanotto propõe a criação de um "gabinete das sombras" para assessorar a política de saúde do governo durante a pandemia. O "padrinho" do grupo é o ex-ministro Osmar Terra.

Funcionários com altos cargos no Ministério da Saúde participavam de reuniões em vídeo do chamado "gabinete paralelo", segundo este vídeo revelado pelo Intercept:

A busca da bala de prata

Este vídeo, originalmente publicado pelo Intercept, mostra alguns dos médicos bolsonaristas treinando Mayra Pinheiro, a "Capitã Cloroquina", para sua sessão na CPI. É aqui que ela lhes pede uma bala de prata para provar "que a hidroxicloroquina e a ivermectina funcionam".

A BBC Brasil resumiu em um vídeo o trajeto para que o uso da cloroquina se tornasse uma questão de política pública durante a pandemia.