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Testemunhas de Papel (Deutsche Welle Akademie, 2013)

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O texto abaixo foi escrito para a revista "El Retrovisor", produto final da oficina “Periodismo sensible a los conflictos”, organizada pela DW Akademie em parceria com o Arquivo Histórico da Polícia Nacional, da Guatemala, em novembro de 2013. O editor foi Roberto Herrscher. É publicado pela primeira vez em português.

Em 2016, Marcelo Soares foi convidado para escrever um texto para a orelha do livro "Una Mirada al AHPN a partir de un estudio cuantitativo", lançado pelo HRDAG. 

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Testemunhas de Papel

MARCELO SOARES e ALEJANDRA GUTIÉRREZ

Em julho de 2005, oito quilômetros de papéis antigos foram encontrados, em meio a ratos e cobertos por fezes de morcegos, nas ruínas de uma construção abandonada. Eram os restos mortais de uma das máquinas de repressão dos anos 70 e 80 na Guatemala. Depois de um intenso e discreto trabalho de arquivo, de digitalização e, sobretudo, de interpretação, o Arquivo Histórico da Polícia começou a falar. Agrega uma voz potente aos processos judiciais e à reescrita da recente história sangrenta do país centroamericano. 

Os documentos falam 

Quarenta e cinco mil pessoas que poderiam contar esta história nunca o farão: desapareceram, estão desaparecidos, foram desaparecidas. São parte dos 300.000 assassinados pelo conflito e repressão que assolaram a Guatemala durante mais de três décadas. 

Porém, já “testemunharam” 80 milhões de folhas de papel que prestam seus depoimentos com modéstia e contundência. Desses dados, já surgiram quatro livros e abertos ao menos oito processos judiciais por crimes contra a humanidade. 

Esses arquivos são tratados com os mais modernos métodos de análise por um grupo de técnicos, acadêmicos e ativistas de direitos humanos. Seu trabalho é ajudar os documentos a contar histórias que a própria história tentou esquecer. Todos os funcionários entrevistados que trabalham no arquivo, sem exceção, falam dele como a missão das suas vidas.

Meu histórico pessoal sugere que sou o homem menos adequado para ser diretor de um arquivo policial, mas foi o que me coube na vida”, brinca o coordenador da AHPN, Gustavo Meoño, ex-guerrilheiro que dirigiu a fundação Rigoberta Menchú e que passou a liderar o processo de reorganização do maior arquivo policial da América Latina.

O milagre

Meoño considera um milagre que o arquivo exista, mas tem uma explicação mais terrena. A Polícia Nacional, dissolvida após a assinatura do tratado de paz em 1996, necessitava de uma organização bem controlada para atingir os seus objetivos.

Uma burocracia, por necessidade, preserva os seus registos porque são úteis para o seu funcionamento”, diz Meoño, fazendo uma analogia com os registos detalhados dos movimentos dos trens que carregavam os detidos para os campos de concentração da Alemanha nazista.

A Polícia Nacional precisava cumprir ordens, seguir os alinhamentos. A documentação era a forma eficaz de vigiar e registrar todo o seu movimento. Os papéis refletem essa lógica burocrática: nomeações, funcionários ausentes por férias, compras de combustível, partes, novidades, fichas, telegramas. Também refletem a lógica de funcionamento de um Estado por meio de sua história. 

 

A limpeza foi feita, as teias de aranha permanecem

O arquivo mencionado nos mais importantes fóruns de arquivistas do mundo, aquele que levou ao banco dos réus alguns dos personagens mais procurados da história recente da Guatemala, está escondido entre os becos de um bairro operário da zona 6 da capital da Guatemala, rodeado pela escola da Polícia Nacional Civil e por um prédio que empilha centenas de sucatas de carros velhos. Encontra-se num terreno do Ministério da Defesa, um prédio do Ministério de Governo, sob a jurisdição arquivista do Ministério da Cultura. É um corpo funcional financiado e equipado por doações de instituições de mais de dez países. O Estado da Guatemala não tem orçamento para sua manutenção.

A cooperação internacional permite que haja um buscador de dados básicos no site da Universidade do Texas, com uma cópia completa resguardada na Suíça, atualizada regularmente conforme os técnicos e profissionais avançam na limpeza e digitalização de milhares e milhares de páginas.

Paralelamente, o estatístico Patrick Ball, do Human Rights Data Analysis Group, que testemunhou como especialista no julgamento de genocídio contra o ex-ditador José Efraín Ríos Montt e o ex-chefe de inteligência José Mauricio Rodríguez Sánchez, coordena um trabalho de estimativa do tamanho e conteúdo das coleções do arquivo através de amostras de documentos.

 

A descoberta casual

Em 2005, os vizinhos da zona 6 apresentaram uma denúncia à Provedoria dos Direitos Humanos (PDH), pois temiam que um possível depósito de armas e explosivos, guardados de maneira precária no que parecia ser um terreno abandonado, colocasse as suas vidas em risco.

A propriedade, cercada de sucata e cheia de labirintos escuros em suas entranhas, já foi as ruínas da obra parada de um hospital policial, a sede do Corpo Dois da polícia e o local que, segundo rumores, teria sido um centro de detenções e tortura entre os anos 70 e 80.

Um historiador acompanhava a comissão que verificava a retirada das armas. Curioso, ele viu através de uma janela montanhas de papéis; ficou intrigado com os cadeados nas portas. Assim, entre escombros, terra e mofo, apareceu o arquivo cuja existência vinha sendo negada desde que a Comissão de Esclarecimento Histórico solicitou os documentos à Polícia Nacional.

Promotores, defensores dos direitos humanos e familiares dos desaparecidos se colocaram imediatamente às portas daquela descoberta. Permaneceram de plantão, 24 horas por dia, até que lhes fosse assegurado acesso aos papéis sujos que poderiam responder a centenas, milhares de perguntas, acumuladas em 36 anos de guerra.

Há cinco anos, Meoño dizia aos jornalistas que apenas os seus filhos ou talvez os seus netos poderiam concluir a tarefa que havia assumido. O coordenador calcula agora que levará mais cerca de dez anos, e a tecnologia segue avançando. Os processos judiciais estão apenas começando, a reconstrução histórica e os processos de reconciliação, após 17 anos da assinatura da Paz, são embrionários, e o Arquivo Histórico virou uma engrenagem que gira tímida e silenciosamente para ajudá-los a avançar.

 

O quebra-cabeça das memórias

Encontrar as respostas em oito quilômetros lineares de páginas parecia impossível. Foi solicitado o apoio da arquivista Trudy Peterson, que já havia dirigido os trabalhos de análise do arquivo do Kremlin, na Rússia. Peterson estava prestes a se aposentar, mas quando viu aquilo, decidiu adiar a aposentadoria e se dedicar ao que é, talvez, o maior trabalho da sua vida.

A primeira instrução de Peterson aos ativistas que ora iniciavam suas carreiras como arquivistas foi que era necessário encontrar a ordem. Precisavam entrar na cabeça de quem criou e organizou os documentos. A organização dos papéis exigiu entender a estrutura, a hierarquia, das diversas instituições que mudaram de nome ao longo de mais de um século de burocracia.

Assim como os antropólogos da Fundação de Antropologia Forense (FAFG) pesquisam o passado soterrado e recompõem os ossos das vítimas, também se organizam os restos do que foi um corpo repressivo que agiu de mãos dadas com o Exército. Era necessário identificar os órgãos vitais, dissecar a anatomia institucional.

 

A ponta da meada: os "fundos documentais"

A equipe de arquivo passou a organizar os “fundos documentais”, as coleções de papéis geradas por um mesmo departamento para localizar documentos. Os papéis antigos foram perdendo o mofo, sendo digitalizados e só então começaram a falar.

Talvez alguns fundos documentais pareçam mais reveladores que outros, mas nada pode ser descartado. O AHPN era um arquivo administrativo, e ali ficava registrado todo o funcionamento da instituição. Há fichas de personagens  servem como índice para localizar os documentos relacionados mais importantes.

“Che” Guevara, por exemplo, tem duas fichas: uma que menciona sua expulsão da Guatemala e outra relacionada à transferência de dinheiro de Cuba para a insurgência guatemalteca. “A codificação dos documentos é a parte mais importante do trabalho”, diz Carolina López, socióloga e consultora da AHPN.

Assim como uma pessoa, todo documento tem nome, data de nascimento, paternidade e estatísticas vitais como a sua extensão. Depois de bem identificado, depois de tomar forma, o documento começa a falar.

 

Um caso construído com celulose

Edgar Fernando García era estudante e sindicalista e, em 14 de fevereiro de 1984, desapareceu. Sua esposa, Nineth Montenegro, foi uma das primeiras a levantar a voz em favor de seus entes queridos.

De dados sobre o desaparecimento de García, ficou o depoimento do companheiro com quem foi sequestrado e muito pouco mais. No arquivo, anos depois de sua morte, as respostas surgiram ficha a ficha em papéis de aparência anódina: duas prisões anônimas, um pedido de condecoração, um recibo de gasolina, teciam um caso que levou quatro pessoas à prisão. Entre eles, Héctor Bol de la Cruz, diretor da polícia daquela época. Agora, Fernando García transformou-se num símbolo do poder do arquivo e dos promotores.

Orlando López, chefe da promotoria de Direitos Humanos, foi o encarregado de representar o Ministério Público no julgamento do genocídio contra Ríos Montt. Ele deixa claro que esta conversa com os documentos é fundamental para suas investigações e para montar casos que não sejam derrubados em tribunal.

 

“Que se inteiravam de tudo, se inteiravam”

O arquivo é uma incomensurável fonte de informações sobre a polícia, e sobre a relação entre a polícia e o Exército. Para Meoño, “é a história da Guatemala”. O arquivo acumula documentos desde a fundação da Polícia Nacional, em 1871.

A equipe, que se formou e se especializou nesse processo de oito anos, também teve que aprender as sutilezas do código usado pelos agentes. Isto lhes permite definir formas de operar, padrões que se tornam imprescindíveis para peritos – especialistas que trabalham dentro do mesmo arquivo –, investigadores e procuradores.

Conforme os documentos sobem na hierarquia, eles perdem informações”, disse um promotor auxiliar do MP. O que começa como um boletim de ocorrência eminentemente descritivo, com detalhes de nomes e locais, chega ao alto comando como o relato de uma simples prisão de subversivos anônimos.

O promotor considera que a intenção não era esconder informação do alto comando, mas sim cumprir regras de discrição. “Mas que eles se inteiravam de tudo, se inteiravam”, afirma.

 

O intercâmbio entre polícia, Exército e o exterior

Pedro García Arredondo, chefe do Comando 6 e do Corpo de Polícia entre 1980 e 1982, está preso. Os investigadores da morte de Edgar Saenz Calito incriminaram García com documentos da prisão, provando que Saenz esteve em um hospital policial e de sua proximidade a um centro de tortura.

Na busca dos culpados, peritos e promotores encontraram indícios que ligam o Exército e a polícia aos crimes que alguns dos seus elementos cometeram. O Exército guatemalteco se recusa a entregar os seus arquivos.

Um golpe de sorte revelou um dos grandes tesouros da memória guatemalteca: o “Diário Militar”. O dossiê, sem pistas de sua origem, registra a captura de 195 “subversivos”, com a confirmação da morte de 103 deles.

Os arquivos chegaram a Kate Doyle, do National Security Archive. Doyle disse que mais de 2.000 documentos da AHPN confirmam os casos do diário militar. Em 2011, a FAFG identificou cinco corpos numa cova do antigo destacamento militar de Comalapa. O Diário dá o código “300” – morto – a todos no dia 29 de março de 1984.

Os documentos servem para confirmar o que dizem as testemunhas e para provar que outros documentos são autênticos. Também demonstram quando alguém está mentindo”, disse Orlando López, do MP.

 

A vida interminável dos documentos

É provável que aqueles que faziam vigília no edifício demolido com montanhas de papéis dentro nunca imaginaram os rumos que os antigos papéis encontrados em 2005 tomariam.

A promotoria continua tecendo testemunhos e documentos para levar a julgamento os autores materiais e intelectuais dos crimes. Estudantes realizam teses e pesquisas. Patrick Ball faz suas análises estatísticas que devem respaldar fatos, como as provas estatísticas de genocídio que apresentou no julgamento, talvez futuramente nas mortes ocorridas nas áreas urbanas da Guatemala e além.

Aquelas montanhas de papéis velhos, com ratos e morcegos e o trabalho de homens de aventais marrons, seguem criando novos documentos, como o documentário "A Ilha", de Uli Stelzner, a ficção "O Material Humano", de Rodrigo Rey Rosa, ou "O Reitor, o coronel e o último decano comunista" de Asier Andrés e Pilar Crespo, todos produzidos com material do arquivo.

A pilha de fichas, recibos e faturas de aparência inocente encontrou seus interlocutores perfeitos, aqueles que querem ouvir. Não só querem: precisam ouvir este testemunho silencioso, mas necessário para poder reconstruir a sua história.

 

ENTREVISTA: Quem é o inimigo?

Carolina Lopes é consultora do AHPN e do Arquivo Geral da América Central. Colabora com Patrick Ball realizando estudos quantitativos. Foi questionada por um conceito que ela pesquisa. Um conceito difícil de escolher, mas potente para entender porque existiu um corpo policial com estas características: o conceito de "inimigo interno". 

 

Como surgiu essa ideia de identificar nos documentos quem era considerado o inimigo interno? 

A Comissão de Esclarecimento Histórico cita brevemente o inimigo interno como aquele que rompe a ordem estabelecida. Porém, nenhum documento diz com clareza quem ele é. Para isso, é necessário conhecer quem são as pessoas que a polícia persegue. Sempre me chamou atenção que, nesses registros, os responsáveis pelas ações são pessoas desconhecidas. O discurso parece uma forma de apresentar à sociedade que o desconhecido é o subversivo. 

Que papel tem a imprensa em reforçar a ideia do inimigo desconhecido?

É muito importante, pois uma de suas fontes é a polícia. A polícia apresenta as novidades e a imprensa as difunde. Nos comunicados, é comum notar a ausência de dados dos autores dos crimes. Na história da polícia há um padrão linear de conduta, que se transformou em matizes. Dificilmente há uma ordem de prender “todos os comunistas”, mas ficam registradas as prisões e mandados. Isso permite pesquisar o perfil dos presos. Quando se fala de conflito interno, tende-se a generalizar, mas de fato mudavam as nuances de acordo com quem fosse o diretor da polícia e o presidente. 

Quais são as nuances que variam?

O Diário Militar, de 1983 a 1985, registra uma onda de prisões de estudantes vinculados à universidade. O período de Ríos Montt se caracteriza mais com o tema do anterior, mas na cidade também houve perseguições, processos e prisões. Os perfis variam. Mas eu busco saber se sempre perseguiram os mesmos, pelas mesmas razões. As mortes são fáceis de contar, mas o que há por trás das mortes?

Muda o inimigo?

Acho que sempre é o mesmo. A juventude em si mesma é um potencial inimigo, em qualquer época, em qualquer regime, em qualquer circunstância. Seguramente os inimigos estarão entre os 18 e 25 anos, a maioria será de homens, estudantes universitários. 

Quais são os paralelismos entre a polícia e o exército?

Não é possível entender a polícia sem o Exército. A polícia é mais urbana. A função do Exército e da polícia é defender o status quo. Sempre trabalham para proteger o status da “sociedade”, para que tudo siga igual.

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