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Claudia Goldin: como os “trabalhos gananciosos” atrasam a igualdade

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Claudia Goldin é aclamada por colegas e alunos em Harvard após ganhar o Nobel. Niles Singer/Harvard Staff Photographer
Claudia Goldin é aclamada por colegas e alunos em Harvard após ganhar o Nobel. Niles Singer/Harvard Staff Photographer
ISABELLA MARIN, com supervisão de MARCELO SOARES

Ainda que a distância entre o rendimento médio de mulheres e homens tenha caído de 70% para 20% ao longo de dois séculos nos EUA, as desigualdades dentro de casa e na forma como as empresas se organizam ainda atrasam o dia em que a diferença chegará a zero. Esse é o tema central das pesquisas de Claudia Goldin, professora de Harvard que ganhou o prêmio Nobel Memorial de Economia em 2023 com suas pesquisas sobre o trabalho das mulheres ao longo da história.

Imagine que você faz parte de um casal com filhos. Alguém precisará estar sempre alerta para problemas que surjam em casa, pronta para sair do escritório a qualquer chamada da escola e não é esperado que faça horas extras ou responda e-mails e telefonemas do trabalho pela madrugada. A outra parte deste casal fica à disposição do chefe, dificilmente sai do escritório para emergências familiares, faz horas extra e ainda leva trabalho para casa. Não é raro que esta última pessoa seja um homem, e o que ele recebe a mais de oportunidades, promoções e outras recompensas corporativas é muito mais alto do que sua parceira recebe.

  Essa situação é o que Goldin descreve como “greedy jobs” – ou “trabalhos gananciosos”, numa tradução literal. Seus estudos sobre a história do trabalho feminino mostram que, mesmo que a situação profissional das mulheres tenha melhorado nos últimos cem anos, a desigualdade entre os parceiros permanece. As áreas mais “gananciosas” com o trabalho de seus profissionais, como finanças, direito e administração, são as que mais tiveram aumentos de salário nas últimas décadas. 

Goldin observa que outro tipo de atividade com as mesmas características do trabalho ganancioso, mas sem recompensas financeiras ou de carreira, é o cuidado da família, que tende a ser feito pelas mulheres. Para que parte do casal possa mergulhar de cabeça num “trabalho ganancioso”, alguém precisa ter flexibilidade para dar conta dos filhos, idosos e outras questões práticas da vida. E elas demandam muito. 

[Dividir as tarefas] meio a meio é uma meta nobre. Mas, quanto mais ganancioso é o emprego, mais caro fica chegar à paridade econômica num casal”, disse Goldin em entrevista para a revista Harvard Business Review em 2023. “Em vez de ambos desistirem de empregos com salários mais elevados por outros mais flexíveis, apenas um membro do casal o fará, e muitas vezes é a mulher. Consequentemente, se forem um casal heterossexual, a desigualdade de gênero aumentará geralmente quando a mulher decidir abandonar a carreira”. Essa dinâmica, diz, também desequilibra a equidade em casais do mesmo sexo, ainda que nesse caso não aumente a desigualdade de gênero.

O gráfico abaixo mostra o modelo de Goldin para explicar a diferença progressiva nos ganhos conforme a pessoa oferece maior disposição à empresa ou à vida. A curva que sobe mais rápido simula a evolução nos ganhos de quem se entrega a trabalhos gananciosos; a linear simula a evolução de quem busca a flexibilidade. A diferença tende a aumentar com o tempo.

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No século 21, as mulheres já ultrapassaram os níveis de educação restritos apenas aos homens há muito poucas décadas. Também ocuparam novos espaços e tarefas, num dos grandes avanços da sociedade e economia modernas. Mesmo com o diploma na mão, porém, os empregos que os exigem começaram a exigir cada vez maior disponibilidade para as demandas da empresa, prejudicando quem precisa cuidar de filhos ou de alguém da família. Normalmente, quem fica em casa é a mãe. Assim, apesar dos avanços, os melhores salários e oportunidades de ascensão profissional dentro das empresas permaneceram dominados pelos homens.

Professora de Harvard, terceira mulher a ganhar o Nobel Memorial de economia desde 1969 e a primeira a conquistá-lo solo, Goldin vê como uma das grandes chaves para mudar este panorama a flexibilização do trabalho. Com regras menos rígidas para todos, mais mulheres poderiam tirar tempo para lidar com a família sem prejuízo à carreira e, por outro lado, estimularia que seus maridos assumissem cada vez mais os papéis de cuidado dentro de casa. 

Essa flexibilidade mais igualitária já é uma realidade em países como a Suécia, onde os pais de uma criança recém-nascida têm direito a dividir igualmente o total de um ano e meio de licença remunerada (nove meses juntos, podendo um dos cônjuges transferir no máximo 5 meses para o outro). “A Suécia tem creches altamente subsidiadas, e também tem uma desigualdade de renda muito mais baixa do que os EUA”, disse ela na entrevista à HBR. “Suponho que oferecer salários mais igualitários será a grande virada para quem tem ensino superior e provavelmente também para o resto da sociedade.”

Outra descoberta importante de Goldin são os prejuízos que afetam as mulheres no mercado de trabalho após ter o primeiro filho. Em 15 anos de pesquisas, ela observou que mães costumam reduzir jornadas de trabalho e mudar de emprego para lugares com maior flexibilidade e menor demanda. Assim, colocam sua carreira em segundo plano para conciliar as demandas profissionais e domésticas. Segundo Goldin, esse comportamento ocasiona perdas por pelo menos uma década após o nascimento da primeira criança.

O gráfico abaixo mostra o impacto dos filhos na diferença do que se recebe pelas horas de trabalho assalariado entre mães e pais. Foram observadas mulheres com ensino superior, que tinham filhos, em faixas de idade de cinco em cinco anos. As barras estimam quanto por cento a menos elas ganham do que seus maridos, por hora trabalhada – as barras azuis claras estimam “efeitos fixos” ajustando o resultado por todas as variáveis conhecidas de cada mulher na pesquisa. Com isso, quanto mais jovem a mulher – e provavelmente com filhos crianças ou adolescentes –, mais as outras variáveis pesam na diferença salarial; na maturidade, quase não há diferença.

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A maternidade é parte de uma subida íngreme durante a qual as mulheres desaceleram, reduzem horas de trabalho e ocasionalmente deixam o emprego por algum tempo ou passam a trabalhar em ocupações ou empresas que demandem menos tempo”, conclui a pesquisadora. “Mas existe um momento em que as demandas de cuidado dos filhos baixam muito e as mulheres podem aumentar as horas de trabalho pago e assumir desafios maiores na carreira. Podemos pensar nesse momento, metaforicamente, como aquele em que as mães atingem um pico e depois correm para o outro lado da montanha. Mas, mesmo que elas aumentem suas horas de trabalho, nunca alcançam o rico vale da igualdade de gênero.

Goldin estudou dados históricos da economia do trabalho feminino desde 1800, quando a ocupação das mulheres ainda era geralmente descrita apenas como “esposa”. Suas análises também apresentam como o emprego de mulheres casadas caiu na mesma época e voltou a crescer com a expansão das indústrias, no século 20. A pílula anticoncepcional também trouxe avanços, permitindo que estudassem por mais tempo, casassem mais tarde e planejassem mais suas famílias. 

Dias antes do anúncio de que havia ganho o Nobel Memorial, Claudia Goldin publicou o artigo “Why Women Won” (Por que as mulheres venceram), analisando dados de momentos cruciais desde 1905 em que os direitos das mulheres foram ampliados. 

A participação das mulheres casadas na força de trabalho, por exemplo, cresceu de menos de 30% para até 70% em apenas 40 anos, entre 1950 e 1990. Em menos de meio século, a “profissão esposa” virou coisa do passado.

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Isso é fruto de uma revolução legislativa inédita ocorrida no período entre 1960 e 1975. O gráfico abaixo mostra, ao longo do tempo, a soma de eventos que representam conquistas que as mulheres tiveram por meio de leis e outros atos públicos. No intervalo de uma geração, as mulheres da geração “baby boom” ganharam cada vez mais direitos trabalhistas, políticos, econômico-sociais e sobre o próprio corpo, possibilitando a criação de uma cultura muito diferente da conhecida por suas mães e avós. Apenas em 1961 tornou-se crime discriminar uma trabalhadora por estar grávida; em 1963, surgiu a Lei de Equidade Salarial, visando o tratamento igualitário no trabalho. 

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Parte dessa revolução cultural se refletiu na opinião pública. Goldin analisou seis décadas de pesquisas de opinião que perguntavam a pessoas com e sem ensino superior se acreditavam que os filhos seriam prejudicados caso a mulher trabalhasse fora. Entre as mulheres graduadas, essa opinião despencou de 60% para cerca de 15% das entrevistadas. Entre os homens, de cerca de 65% para menos de 20%. Mais da metade das mulheres que não tiveram acesso ao ensino superior temiam consequências para os filhos na década de 1970, mas em 1990 a fração era semelhante à das mais escolarizadas: 30%.

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A distinção com o Nobel Memorial chega a Claudia Goldin aos 77 anos, no topo de uma carreira acadêmica que praticamente coincide completamente com o período de avanços nos direitos das mulheres.

Nascida em 1946, exatamente o início do grande crescimento demográfico após a segunda guerra mundial, a economista se doutorou em economia do trabalho pela Universidade de Chicago em 1972, no pico das conquistas de direitos femininos. Casada com o também economista Lawrence Katz, seu coautor em livros e estudos, não costuma falar a respeito de sua vida pessoal em entrevistas. Em sua conta do Twitter (a verdadeira, e não a fraudulenta criada por um italiano para caçar engajamento), atualizada com intervalos de dois a quatro anos, mostra apenas fotos de sua golden retriever, chamada Pika.

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Sempre pensei em mim como uma detetive”, disse ela em entrevista à Fundação Nobel. “Ser uma detetive significa que você tem uma questão. E a questão é tão importante que você vai até o fim para resolvê-la. Além disso, um detetive sempre acredita que existe uma maneira de achar a resposta. E essa é a maneira como eu sempre fiz pesquisas.

 

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