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Olhando para os municípios invisíveis

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Ilustração de capa do REM-F. O especial foi publicado em 28 de agosto de 2006 na Folha de S.Paulo

Versão revisada de texto publicado no Medium em 23 de setembro de 2017.

O Ranking de Eficiência dos Municípios (REM-F), material de que fui coautor na Folha em 2016, venceu o prêmio Petrobras, na categoria Economia. Levantei o caneco em 9 de outubro de 2017, na cerimônia realizada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Os dados levantados naquele ano continuam no ar até hoje.

O REM-F é uma das coisas de que mais me orgulho na carreira. Em julho, o mesmo trabalho foi finalista do Data Journalism Awards (perdemos para o melhor do mundo, “Electionland”, o que em si foi uma vitória).

Originalmente, a ideia era fazer sozinho uma reportagem de dados simples. Eu tinha um banco de dados com estatísticas variadas por municípios. E desde 2014 vinha observando o quanto as condições sociodemográficas locais influenciavam na eleição, com o toque do mestre infografista Mario Kanno.

A ideia cresceu quando resolvi bater um papo com o Fernando Canzian, um dos maiores repórteres do Brasil, que conhece os municípios do Nordeste como a palma de sua mão. E cresceu ainda mais quando dois mestres do Datafolha, Alessandro Jannoni e Renata Nunes, criaram e ajudaram a validar um indicador sintético de dados sociodemográficos dos municípios, de responsabilidade dos prefeitos. E o TV Folha entraria fazendo minidocumentários sobre aspectos da eficiência municipal.

(Um trabalho feito em equipe é sempre maior do que a soma das partes.)

Com os dados em mãos, os números nos diziam que municípios pareciam mais eficientes e quais pareciam menos eficientes. Era hora de ir a campo para visitá-los. Escolhemos 16, de perfis diferentes de eficiência, em várias regiões. O Canzian foi para o Norte, Nordeste e Minas; eu fui para o Sul e ao Guarujá.

Uma das minhas missões era visitar Jari (RS), uma cidade que estava na rabeira do ranking. Três mil habitantes, emancipada há 20 anos. O PIB nem era tão ruim: dava em 2016 2,75 apês do Geddel [em 2017, a Polícia Federal encontrou R$ 51 milhões em dinheiro vivo num imóvel do deputado Geddel Vieira Lima]995 municípios brasileiros não têm o PIB daquele imóvel. Mas as outras estatísticas disponíveis não eram nada animadoras. No Google Maps, sua área urbana era de doze quarteirões.

Imagem de satélite do município de Jari, no Rio Grande do Sul. À época a cidade tinha em 2015 3660 habitantes distribuídos em 12 quarteirões
Imagem de satélite do município de Jari, no Rio Grande do Sul. À época a cidade tinha em 2015 3660 habitantes distribuídos em 12 quarteirões (Imagem: Google Maps)

Eu e o Félix Lima, da TV Folha, acordamos muito cedo naquele junho de 2016 para pegar a estrada, num frio danado. O asfalto ia só até certo ponto; dali para a frente, chão batido por dezenas de quilômetros.

Retrato da viagem. Foto tirada por detrás do para-brisas (Foto: Arquivo pessoal)
Estrada de terra a caminho de Jari (RS) (Foto: Arquivo pessoal)
Casa típica de fazendas por detrás da cerca no interior do Rio Grande do Sul (Foto: Arquivo pessoal)
Ponte de madeira sobre rio da região marcada pelos seus afluentes (Foto: Arquivo pessoal)
Pé empoeirado após o trabalho de reportagem (Foto: Arquivo pessoal)

Olhando apenas os dados, eu esperava encontrar uma cidade em estado de calamidade. O que encontrei foi uma cidade “pobre mas limpinha”.

Além dos 12 quarteirões que o Google Maps mostrava, outros quatro surgiam. Guardadas as proporções, parecia o final de “Era uma Vez no Oeste”.

Uma escola novinha, recém-inaugurada e com cheiro de tinta, tinha como dar conta da demanda que faltava na educação. Rede de esgoto é sempre um megaproblema nos municípios, mas rede de água havia.

Casa colonial em Jari (RS) (Foto: Arquivo pessoal)
Mercado local na cidade do interior gaúcho (Foto: Arquivo pessoal)

Jari é uma daquelas mais de cinco mil cidades brasileiras das quais só se ouve falar quando há uma tragédia, essa é a verdade.

Pense em Porto de Moz (PA), de que só se ouve falar em caso de mulher cativa por dois anos, naufrágio, ataques de jacaré ou emergência por chuva ou conflitos. A última vez em que Jari esteve no noticiário antes do REM-F foi quando apareceu na rabeira do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal do RS.

Isso ficou claro quando, tomando um chimarrão na prefeitura para marcar um bom horário para a entrevista na escola, houve este diálogo:

— Tá, mas e quanto vai custar?
— Como assim? Lógico que nada.
— Ah, todo ano aparece algum jornal aqui pra negociar encarte publicitário.

Explicamos que o investimento era do jornal. Queríamos mostrar os vários perfis de municípios do Brasil. Mas pense no que essa noção da autoridade local significa. O Brasil não conhece esses mais de cinco mil municípios. A imprensa regional não raro só os procura para vender. A nacional, em caso de tragédia.

A ineficiência que os dados mostravam de Jari era fruto da falta de estrutura. A falta de estrutura é em parte fruto da falta de recursos. A falta de recursos é em parte fruto do quanto tem gente enchendo a mala de dinheiro em Brasília.

Fazemos um excelente trabalho mostrando quem enche a mala de dinheiro e como. Mas olhamos tanto para aqueles 5.802 km² desenhados por Niemeyer e Lúcio Costa no interior de Goiás que boa parte dos outros 8,5 milhões de km² brasileiros acaba ficando desassistida.

Onde há gente, há histórias. E tem brasileiro pra caramba no Brasil. Meu binóculo é o dos números, mas eles só contam um pedaço da história. É impossível contar a história direito sem sujar o sapato.


Há uns dez anos, fui jantar com os mestres correspondentes Patrick McDonnell e Andrew Downie. Este contou uma história muito divertida sobre um conhecido em comum deles que havia sido correspondente na China. O editor ligou para ele perguntando se tinha alguma pauta. Ele respondeu que não, não tinha história pra hoje.

Diz o Andrew que o editor mandou um fax dizendo o seguinte:

PLEASE CONFIRM: TWO BILLION PEOPLE, ZERO STORIES?

( ) YES
( ) NO

Grande sábio, esse cara.

Por isso, entre outros, é que eu tiro meu chapéu para o mestre Paulinho Oliveira, criador do projeto Meus Sertões.

Mestre Paulinho foi editor em jornais do Rio e secretário de redação num jornal baiano, de onde foi demitido numa dessas famosas “reestruturações” que rolam por aí. Em casa, ele resolveu criar seu projeto próprio e fazer jornalismo nos seus termos, contando as histórias que ele gostaria de ler.

Sempre que ouve falar sobre alguma história interessante lá no meio do sertão, ele parte pra estrada. E volta contando histórias saborosas como a do São João mais vidaloka do Brasil, a do museu que não existe e a do homem que gorjeia.

Vocês realmente deviam ler o Paulinho.