Versão revisada de texto publicado no Medium em 23 de setembro de 2017.
O Ranking de Eficiência dos Municípios (REM-F), material de que fui coautor na Folha em 2016, venceu o prêmio Petrobras, na categoria Economia. Levantei o caneco em 9 de outubro de 2017, na cerimônia realizada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Os dados levantados naquele ano continuam no ar até hoje.
O REM-F é uma das coisas de que mais me orgulho na carreira. Em julho, o mesmo trabalho foi finalista do Data Journalism Awards (perdemos para o melhor do mundo, “Electionland”, o que em si foi uma vitória).
Originalmente, a ideia era fazer sozinho uma reportagem de dados simples. Eu tinha um banco de dados com estatísticas variadas por municípios. E desde 2014 vinha observando o quanto as condições sociodemográficas locais influenciavam na eleição, com o toque do mestre infografista Mario Kanno.
A ideia cresceu quando resolvi bater um papo com o Fernando Canzian, um dos maiores repórteres do Brasil, que conhece os municípios do Nordeste como a palma de sua mão. E cresceu ainda mais quando dois mestres do Datafolha, Alessandro Jannoni e Renata Nunes, criaram e ajudaram a validar um indicador sintético de dados sociodemográficos dos municípios, de responsabilidade dos prefeitos. E o TV Folha entraria fazendo minidocumentários sobre aspectos da eficiência municipal.
(Um trabalho feito em equipe é sempre maior do que a soma das partes.)
Com os dados em mãos, os números nos diziam que municípios pareciam mais eficientes e quais pareciam menos eficientes. Era hora de ir a campo para visitá-los. Escolhemos 16, de perfis diferentes de eficiência, em várias regiões. O Canzian foi para o Norte, Nordeste e Minas; eu fui para o Sul e ao Guarujá.
Uma das minhas missões era visitar Jari (RS), uma cidade que estava na rabeira do ranking. Três mil habitantes, emancipada há 20 anos. O PIB nem era tão ruim: dava em 2016 2,75 apês do Geddel [em 2017, a Polícia Federal encontrou R$ 51 milhões em dinheiro vivo num imóvel do deputado Geddel Vieira Lima] — 995 municípios brasileiros não têm o PIB daquele imóvel. Mas as outras estatísticas disponíveis não eram nada animadoras. No Google Maps, sua área urbana era de doze quarteirões.

Eu e o Félix Lima, da TV Folha, acordamos muito cedo naquele junho de 2016 para pegar a estrada, num frio danado. O asfalto ia só até certo ponto; dali para a frente, chão batido por dezenas de quilômetros.





Olhando apenas os dados, eu esperava encontrar uma cidade em estado de calamidade. O que encontrei foi uma cidade “pobre mas limpinha”.
Além dos 12 quarteirões que o Google Maps mostrava, outros quatro surgiam. Guardadas as proporções, parecia o final de “Era uma Vez no Oeste”.
Uma escola novinha, recém-inaugurada e com cheiro de tinta, tinha como dar conta da demanda que faltava na educação. Rede de esgoto é sempre um megaproblema nos municípios, mas rede de água havia.


Jari é uma daquelas mais de cinco mil cidades brasileiras das quais só se ouve falar quando há uma tragédia, essa é a verdade.
Pense em Porto de Moz (PA), de que só se ouve falar em caso de mulher cativa por dois anos, naufrágio, ataques de jacaré ou emergência por chuva ou conflitos. A última vez em que Jari esteve no noticiário antes do REM-F foi quando apareceu na rabeira do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal do RS.
Isso ficou claro quando, tomando um chimarrão na prefeitura para marcar um bom horário para a entrevista na escola, houve este diálogo:
— Tá, mas e quanto vai custar?
— Como assim? Lógico que nada.
— Ah, todo ano aparece algum jornal aqui pra negociar encarte publicitário.
Explicamos que o investimento era do jornal. Queríamos mostrar os vários perfis de municípios do Brasil. Mas pense no que essa noção da autoridade local significa. O Brasil não conhece esses mais de cinco mil municípios. A imprensa regional não raro só os procura para vender. A nacional, em caso de tragédia.
A ineficiência que os dados mostravam de Jari era fruto da falta de estrutura. A falta de estrutura é em parte fruto da falta de recursos. A falta de recursos é em parte fruto do quanto tem gente enchendo a mala de dinheiro em Brasília.
Fazemos um excelente trabalho mostrando quem enche a mala de dinheiro e como. Mas olhamos tanto para aqueles 5.802 km² desenhados por Niemeyer e Lúcio Costa no interior de Goiás que boa parte dos outros 8,5 milhões de km² brasileiros acaba ficando desassistida.
Onde há gente, há histórias. E tem brasileiro pra caramba no Brasil. Meu binóculo é o dos números, mas eles só contam um pedaço da história. É impossível contar a história direito sem sujar o sapato.
Há uns dez anos, fui jantar com os mestres correspondentes Patrick McDonnell e Andrew Downie. Este contou uma história muito divertida sobre um conhecido em comum deles que havia sido correspondente na China. O editor ligou para ele perguntando se tinha alguma pauta. Ele respondeu que não, não tinha história pra hoje.
Diz o Andrew que o editor mandou um fax dizendo o seguinte:
PLEASE CONFIRM: TWO BILLION PEOPLE, ZERO STORIES?
( ) YES
( ) NO
Grande sábio, esse cara.
Por isso, entre outros, é que eu tiro meu chapéu para o mestre Paulinho Oliveira, criador do projeto Meus Sertões.
Mestre Paulinho foi editor em jornais do Rio e secretário de redação num jornal baiano, de onde foi demitido numa dessas famosas “reestruturações” que rolam por aí. Em casa, ele resolveu criar seu projeto próprio e fazer jornalismo nos seus termos, contando as histórias que ele gostaria de ler.
Sempre que ouve falar sobre alguma história interessante lá no meio do sertão, ele parte pra estrada. E volta contando histórias saborosas como a do São João mais vidaloka do Brasil, a do museu que não existe e a do homem que gorjeia.
Vocês realmente deviam ler o Paulinho.
